À caminho da clínica, por volta das 6h da manhã, pelo fluxo ainda com pouca vida do trânsito, ganhei de presente o prestar atenção em outras coisas que não só nos carros que passavam ao meu lado. E, assim, deparei-me com uma andorinha voando alto na copa de uma árvore carregando um galho fino no bico.
Imediatamente lembrei-me da minha avó, que foi quem me falou pela primeira vez na vida — ou que eu me lembre — sobre andorinhas. Pensei: se damos atenção, as coisas comunicam.
Vovó gostava de escrever e, quando eu comecei a ter esse mesmo gosto, ainda muito nova e com imaginário cheio apenas do que assistia, ela era a única que lia. E sorria até quando eu copiava as músicas que ela tinha gostado para que ela lendo, pudesse aprender a letra para cantar. Nessa época, eu não tinha acesso a computador e, tivesse, pouco saberia como achar as letras de Roberto Carlos. Decorei “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração” apertando diversas vezes o replay no meu companheiro Sony MegaBass para copiar cada verso em uma folha de ofício para ela.
Por volta dos meus onze anos, na quinta série fundamental, fazendo as minhas primeiras redações, era ela quem pacientemente lia, corrigia o português antes da professora e elogiava — mesmo que achasse aquela história de uma criancice imensa. Na época, isso foi mágico, me fez querer escrever até quando não me mandavam.
Passei a criar histórias sobre as nossas idas aos domingos para granja da família e até a inventar algumas estórias, olhe só. E foi vovó também quem me disse que histórias inventadas se escreve estórias. Nunca esqueci. Tudo que ela me ensinou ficou marcado. E eu lembrei dela quando avistei a andorinha.
Também nunca esquecia o nome de um poeta que ela gostava muito: Jansen Filho. Não li nada do que ele escreveu sem ser com ela. Não era algo meu, não era algo dela, era algo nosso. E muitas coisas que só eu lembro dela eram apenas nossas.
Voltando para os ares, vovó sempre colocava andorinha nos poemas. Talvez gostasse mesmo das belezas dos pássaros, por mais que fosse algo diferente em nós duas, ver pássaros me lembra dela, é como se fosse um pouco da presença dela. Se permitirmos, é pela presença que tudo fala conosco, de alguma forma.
As vidas importam apenas na medida em que os traços das unidades de medida nas fitas são o vínculo, a experiência, o afeto, o aprendizado. Alguns acham que a medida da vida é o status social, eu acredito que seja o patrimônio que aquela pessoa deixou dentro de nós. Amanhã minha avó faria 101 anos. No meu coração, fará, na verdade, porque todos esses anos continuam muito bem distribuídos em algumas vidas.
Rubem Alves escreveu sobre a arte de ouvir, que ninguém estava preocupado em fazer curso de escutatória, mas todo mundo queria aprender a falar bem e que os cursos de oratória estavam sempre lotados. Só que o amor é próprio daqueles que escutam. E, completo, seu Rubens, a memória também. Minha avó sempre falou comigo porque eu a escutava, foram muitas histórias enquanto a cadeira de gerdau balança até que a meia noite chegasse. Não era assim com todo mundo, só com quem lhe dava ouvidos. E ela me amou muito ao escutar e ler as minhas bobagens desde os meus onze anos.
Toda troca de amor é curativa. Mas a que existiu com ela foi uma aprendizagem sobre curar. Sem essa troca, nossa relação seria outra e as andorinhas nas ruas às 6h da manhã seriam só andorinhas na rua, não falariam comigo sobre nada, nem sobre minha avó. E é porque falamos e nos ouvimos muito enquanto ela esteve viva que faço valer, sem nenhuma dor, a frase que mais ouvi da sua boca: não morre quem nos vivos vive.
O 12 de abril é um dia de apagar cento e uma velinhas. Valter Hugo Mãe escreveu em “As mais belas coisas do mundo” que “um dia a tristeza da lugar à celebração” e, por aqui, apesar da saudade pintar de azul o céu, há sempre andorinhas cruzando o azul do céu para celebrar essa vida comigo.